domingo, 28 de dezembro de 2008

quand nous nous réveillons d'entre les morts


I

Estou vivendo na Vila Borghese. Não há resquício de sujeira em parte alguma, nem uma cadeira fora do lugar. Estamos completamente sozinhos aqui e estamos mortos.

II

Não vi a moto pelo retrovisor ao mudar de pista, devia estar no ponto cego. O pior foi ver o sujeito caído, crânio esmagado por roda de ônibus.
Com calma saí do carro, olhei o corpo, esperei a polícia. Disse ao guarda que não vi nada no retrovisor, apenas ouvi o barulho oco do contato da moto com a lataria do meu veículo e, logo depois, o frêmito do ônibus freando.
Na identidade do cadáver, seu nome, cujas iniciais eram C. R. O guarda tentou descobrir o que o motoqueiro fazia àquela hora da noite. Nada perguntou sobre mim. Era um morto e era meu, talvez um solitário como eu, ou algum outro nefelibata anônimo. E eu ali olhando aquela cena como se o mundo flutuasse e sua mecânica secreta quedasse por instantes suspensa e inteligível.
Gostaria de alguém para me jogar à realidade, pisando-me; queria sangrar, me arrepender, me cortar, me machucar. Alguém para ligar dizendo "acabo de matar alguém". Perguntei ao policial se precisavam de ajuda com o corpo, "posso prestar depoimento se necessário", mas me disse que não era preciso, que eu poderia ir para casa; "mas não quero ir, posso ser culpado, se necessário", pensei. Tive a sensação de que jamais me chamariam para apurar o fato. C. R. era tão real para mim quanto a atmosfera pesada, fluida, viscosa e organicamente imponderável de uma das luas de Saturno.
Entrei no carro, pus o cinto, olhei para o céu nublado, procurando uma resposta. Não há respostas, intuí. Voyage, voyage, eternellement, não lembrava de ter deixado o som ligado. O porta-luvas misteriosamente se me abriu, e de lá saiu uma mão feminina muito bonita, retesada, unhas desbotadas, um tom esverdeado que lhe dava um aspecto lúgubre. Segurava uma maçã profundamente vermelha e sóbria, oferecendo-me. Pensei ser talvez algum de meus outros mortos, alguém inatingível, ou esquecido. Dans l'espace inouï de l'amour, voyage, voyage. E aí me assaltou o pensamento de que eu estivesse me comunicando diretamente com esse esquecimento - de mim mesmo? - ou estivesse também morto.
Senti fome. Não era hora para ilações. Mordi a maçã.

***

au dessus des barbelés,
des coeurs bombardés,
regarde l'océan.

Um comentário:

::Soda Cáustica:: disse...

... e lá vem o tal reveillon.tsc tsc