domingo, 28 de dezembro de 2008

quand nous nous réveillons d'entre les morts


I

Estou vivendo na Vila Borghese. Não há resquício de sujeira em parte alguma, nem uma cadeira fora do lugar. Estamos completamente sozinhos aqui e estamos mortos.

II

Não vi a moto pelo retrovisor ao mudar de pista, devia estar no ponto cego. O pior foi ver o sujeito caído, crânio esmagado por roda de ônibus.
Com calma saí do carro, olhei o corpo, esperei a polícia. Disse ao guarda que não vi nada no retrovisor, apenas ouvi o barulho oco do contato da moto com a lataria do meu veículo e, logo depois, o frêmito do ônibus freando.
Na identidade do cadáver, seu nome, cujas iniciais eram C. R. O guarda tentou descobrir o que o motoqueiro fazia àquela hora da noite. Nada perguntou sobre mim. Era um morto e era meu, talvez um solitário como eu, ou algum outro nefelibata anônimo. E eu ali olhando aquela cena como se o mundo flutuasse e sua mecânica secreta quedasse por instantes suspensa e inteligível.
Gostaria de alguém para me jogar à realidade, pisando-me; queria sangrar, me arrepender, me cortar, me machucar. Alguém para ligar dizendo "acabo de matar alguém". Perguntei ao policial se precisavam de ajuda com o corpo, "posso prestar depoimento se necessário", mas me disse que não era preciso, que eu poderia ir para casa; "mas não quero ir, posso ser culpado, se necessário", pensei. Tive a sensação de que jamais me chamariam para apurar o fato. C. R. era tão real para mim quanto a atmosfera pesada, fluida, viscosa e organicamente imponderável de uma das luas de Saturno.
Entrei no carro, pus o cinto, olhei para o céu nublado, procurando uma resposta. Não há respostas, intuí. Voyage, voyage, eternellement, não lembrava de ter deixado o som ligado. O porta-luvas misteriosamente se me abriu, e de lá saiu uma mão feminina muito bonita, retesada, unhas desbotadas, um tom esverdeado que lhe dava um aspecto lúgubre. Segurava uma maçã profundamente vermelha e sóbria, oferecendo-me. Pensei ser talvez algum de meus outros mortos, alguém inatingível, ou esquecido. Dans l'espace inouï de l'amour, voyage, voyage. E aí me assaltou o pensamento de que eu estivesse me comunicando diretamente com esse esquecimento - de mim mesmo? - ou estivesse também morto.
Senti fome. Não era hora para ilações. Mordi a maçã.

***

au dessus des barbelés,
des coeurs bombardés,
regarde l'océan.

sábado, 27 de dezembro de 2008

silence is sexy


Eu fazia desenhos imaginários nas costas de suas mãos, num café. Nada sobre ela sabia, nem sobre onde estávamos. Lembrava vagamente o Café de Flore, no Boulevard Saint Germain, sua fachada arredondada e orbicular. Mas não era o Café de Flore, não era Paris; digo, talvez fosse. Como bem poderia ser Roma, Veneza, Budapeste, Praga, Madrid, Buenos Aires, Rio de Janeiro... ou Estrasburgo. O letreiro apenas dizia Le Café.
Na mesa, um capuccino e uma cerveja. Eu tomava cerveja. E, em silêncio, com a ponta dos dedos, desenhava em suas mãos. Jovens tocavam displicentemente violinos e violoncelos, ora ensaiando um quarteto de cordas ilustre e exangue, que me pareceu ser Haydn.
Apenas observávamos, com a serenidade que uma brisa de sábado à tarde trazia, deslizando na pele de nossas faces.
Nossa comunicação era através de um guardanapo, no qual desenhávamos desenhos bobos, eu desenhei uma casa ao lado de um ponto de interrogação; ela me desenhou um mapa que não entendi.
Em determinado momento, quis falar-lhe. Não sabia em qual idioma. "est-ce que vous êtes Sylvie ?"; ela me olhou e riu, "non", e disse seu nome, em português. Ao fundo, ouvia-se o tilintar de copos.
E aquele barulho delicado, vez em quando, dos sinos-buzinas das bicicletas, pedindo licença aos transeuntes.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008


Até mesmo fisiologicamente fui alterado: a quantidade de café ingerida para aumentar a intensidade da produção, os remédios para dormir. E meu corpo se vai imiscuindo às máquinas aos carros ao concreto à fumaça ao vidro quente ao ar pesado ao desejo lancinante. E ainda há os que evocam a palavra natural ou naturalização. Puta que pariu, eu não sou natural, gritei. Fazia tempo que não gritava. Apaguei a luz do banheiro e saí da frente do espelho.
Minha gravata estava torta no colarinho, como pude perceber, porém resolvi ir assim mesmo para ver se alguém iria reparar; o pessoal do escritório, talvez. Míriam, a secretária, talvez. Sentia-me impotente, como em todos os dias antes de sair para o trabalho. Chave-porta-botão-elevador. Carro. Tocando Chopin. Mudei para Bob Marley.
Soldado Búfalo no coração da América. Meu carro andava e as pessoas andavam. Ou o chão andava e as pessoas simulavam os movimentos parecendo caminhar? Questão de ponto de vista.
No escritório, Míriam me deu bom dia e respondi, peguei o jornal e fui para a minha sala; não havia muito trabalho a se fazer. Jovem punk assassina militante gay a facadas. Cientistas descobrem o gene responsável pela delinqüência. Lançado novo iPod. Anuncie aqui. - sempre as mesmas merdas. A natureza do homem. Homem.
Liguei para Letícia, "vem cá, você não pode ir à reunião com a Conservas Nogueira não?"; "vá você, hoje tenho audiência até tarde". As mulheres daquele escritório me amedrontavam, e seduziam. Acho que no geral era assim: eu, solitário e dependente do afago feminino, ao mesmo tempo com receio de me expor em demasia para elas. Tomei duas xícaras de café. Acertei a gravata no colarinho.
Fui me encontrar com os representantes da Conservas Nogueira; ao sair, na sala de esperas, pude ver uma moça muito bonita, blusa que me pareceu de seda bege, calça jeans colada e curta, mostrando as panturrilhas, com uma tatuagem na da direita, uma figura feérica com detalhes verdes e azuis, falando com Míriam, provavelmente esperando para ser atendida por Letícia. Pude ouvir entrecortadamente a conversa. Separação litigiosa, pensão alimentícia, etc. Aquele escritório me sufocava, apertei o passo para sair dali.
O elevador vazio me refletiu em seus três espelhos. Parou, e uma voz metálica feminina disse "sexto andar". Uma senhora entrou. Assobiei o bolero de Ravel enquanto o elevador chegava ao térreo, e fui embora.

*Trilha sonora sugerida: terceiro movimento de Pathétique [www.youtube.com/watch?v=3mp6-bLEgcw&feature=related].

terça-feira, 23 de dezembro de 2008



é muito claro
amor
bateu
para ficar
nesta varanda descoberta
a anoitecer sobre a cidade
em construção
sobre a pequena constrição
no teu peito
angústia de felicidade
luzes de automóveis
riscando o tempo
canteiros de obras
em repouso
recuo súbito da trama

para uma violeta que doce espreita


Não sei, o episódio da vodka e das baratas?
Falar sobre uma palavra ou termo difícil de resumir requer certo esforço.
Só sei que ele ao chegar à casa de deconhecidos estava morrendo de calor de dezembro. O suor escorrendo no pescoço, empapando a camiseta. Ao secretamente desejar água, foi-lhe oferecido um drink de vodka com não-sei-o-quê, talvez suco de maracujá, por irônico que possa parecer. E foi este presente-de-grego que utilizou para os seus propósitos, não sem antes lançar mão de gelo: pedras deliciosas naquele momento, diria epifânicas, dentro da geladeira, cubinhos ordinários de água desejada.
Feito isto, ouviu Beatles enquanto os outros conversavam, e ele sempre afável e tímido sorrindo com tudo, pois tudo era, na pior das hipóteses, mais uma novidade efêmera; e não pretendia parecer antipático; não ali, naquele momento, dia e hora. Mas sua calma o fez alheio no canto da sala, e só pensava era em chupar gelo - tudo bem, com vodka e maracujá, o mundo não é perfeito; mas sem estes, como desejaria possuir o gelo? Não sei.
Encheu o copo de gelo e foi para fora da sala, numa área exterior ornada por bromélias e damas-da-noite onde pessoas também conversavam. Havia até uma pequena violeta apreensiva tentando entender aquilo tudo.
A questão é: ele não sabia onde ficar, simplesmente flanava por ali feito sombra anônima e, ao final, essa identidade não parecia ser de todo ruim.
É que eles lá na obsessão de falar e falar, e alcoolizar a produção de sensações, e se agitar na ciranda de palavras vazias, não viram um casal de baratas que serenamente os observava - e digo que estavam assustadas.
Ele logo viu uma - achou que fosse apenas uma - no caule de uma dama-da-noite, camuflada, anteninhas se movendo lentamente para cima e para baixo e para os lados. Com receio de falar sobre ela ou fazer qualquer estrépito e parecer deselegante, pois seria provavelmente a coisa mais grandiosa que diria naquele calor, calou e ficou por instantes ali parado há poucos centímetros dela, pensando "uma barata, uma barata. se ela voar no meu pescoço...! não sei o que faço, não mesmo". Mas não voou. Ficou na mesma posição com suas anteninhas e ele se acostumou e ficou também calmamente ali.
Voltou para pegar mais gelo e, ao retornar para o seu lugar vazio perto da barata que ninguém via, foi surpreendido - sim! do canto, no chão, surgira outra, e do mesmo tamanho, se arrastando com dificuldade. E foi aí que alguém soltou a primeira cacofonia de bicho-desesperado-do-topo-da-cadeia-alimentar. Por algum motivo que lhe era estranho, na sua calma fizera um pacto secreto com elas. A do chão deve ter percebido, pois veio se aproximando dele, que estava imóvel.
Levantou um dos pés para que passasse e outro alguém a matou. Seu único tesão naquele momento era chupar gelo, mas poderiam bem ser também cubos com sabor de melancia.

domingo, 21 de dezembro de 2008


Eu investigo Deus. É claro que acredito, senão não estaria investigando. A sintaxe, a forma, o modus operandi do acaso. É meu grande tema, meu grande interesse, minha diversão. E aí a palavra Deus é só um ponto de interrogação.
"Estive doente
doente dos olhos, doente da boca, dos nervos até.
Dos olhos que viram mulheres formosas
da boca que disse poemas em brasa
dos nervos manchados de fumo e café.
Estive doente
estou em repouso, não posso escrever.
Eu quero um punhado de estrelas maduras
eu quero a doçura do verbo viver."

(De um louco anônimo - transcrito por Caco Barcelos na reportagem "Crime e loucura", publicada na extinta Folha da Manhã, Porto Alegre, RS.)

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

corpos que fogem ou crepúsculo perpétuo


Ozon anda preenchendo os espaços vazios deste blog. É que os dois últimos filmes que vi dele são meio bruxos, com um quê de sutil compreensão cósmica do cotidiano que até agora só encontrei em Kieslowski.
Dessa vez foi 5x2, um mosaico triste do relacionamento de Marion e Gilles. Todavia bonito. A primeira em uma ingênua e quase indulgente busca do amor perdido; o segundo tangenciando amores achados, a entropia dos pequenos atos do dia-a-dia. E ambos fogem: juntos e de mãos dadas ora espalmadas em ausência mútua. Quando percebe que poderia ter engatilhado algo maior e que fugisse de seu controle, Gilles simplesmente se faz ausente - e digo simplesmente não com o intuito de reprovação, mas porque é fácil, é simples e elementar.
Pensei que eu também fizesse o mesmo, e é o que tenho feito a vida inteira. Uma espécie de experimentação que não se permite estancar, e sua resposta é: ela-mesma-infinita.
Agora está na moda, mas devo dizer e bradar e cantar, porque gosto muito:

If I was young, I'd flee this town I'd bury my dreams underground
As did I, we drink to die, we drink tonight


Mas me pergunto o porquê de cantar isso - disso fazer tanto sentido. - e faz. Aceitar algo com tanta força quanto essa música me assusta, me coloca diante de uma situação que pensava não ser capaz de viver. Aquela em que me transmuto em uma geração, na minha geração, e me sinto sendo cantado.

We'll lay it down, it's not been found, it's not around


Pink Floyd não iria compor The Dark Side of the Moon hoje, quiçá a banda se formasse. Talvez não houvesse quem cantasse

You raise the blade, you make the change
You re-arrange me 'till I'm sane.

You lock the door

And throw away the key

There's someone in my head but it's not me.


E vamos deixando que nos perpassem os estribilhos dessas canções que um dia existiram com tanto sentido.
Voltando ao que podemos chamar de nós, não sei se é bom ou ruim ficar nessa de fuga, talvez ninguém responda.
Na última cena, os corpos de Marion e Gilles esmorecem na água do mar e o sol declina no crepúsculo. Será que o sol explica a nossa fuga, ele que foge sempre pra aparecer no mesmo lugar e fugir de novo? Não creio; talvez ela seja perpétua e alheia a repetições. Repete-se o desejo e nada mais: precisamos achar outra estrela.
Lembrei vagamente de Gliese 581 c, um planeta que orbita a estrela anã Gliese 581, na constelação de Libra. Por causa da alta gravidade, não há rotação, e uma de suas faces, onde sempre é dia, fica sempre voltada para Gliese. Dizem que nos pólos, por isso, há um crepúsculo perpétuo.
Permito-me adicionar a este crepúsculo perpétuo um mar, uma praia e um corpo só, crepitando, ao som de ukuleles e trompetes e percussões pulsando pequenas explosões, insidiosamente simulando corações.
Let the seasons begin - it rolls right on...


Dobrou o corredor deserto. E aí caiu em outra esquina. Que a levou a outro corredor que desembocou em outra esquina.
Então continuou automaticamente a entrar pelos corredores que sempre davam para outros corredores. Onde seria a sala de aula inaugural? Pois junto desta encontraria as pessoas com quem marcara encontro. A conferência era capaz de já ter começado. Ia perdê-la, ela que se forçava a não perder nada de cultural porque assim se mantinha jovem por dentro, já que até por fora ninguém adivinhava que tinha quase 70 anos, todos lhe davam uns 57.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

make them blue and it's enough


"Quem de dentro de si não sai, vai morrer sem amar ninguém", diz Vinicius de Moraes quando ouço Berimbau/Consolação. Ouso discordar. Pois quem sai também amiúde morre sem amar ninguém - acho até mais comum do que aquele que ama entrincheirado, algo tão mais fácil e simples, e que, sim, tentamos.
Amar o que dança ao som de melodias inauditas é duro porque é um perder-se, pelo menos no princípio, e isso ninguém quer.
Ninguém quer perder-se. E perder a graça já codificada. Já coisificada. Mas eu não quero absolutamente acreditar nisso. Apenas constato. E ninguém sabe como é sofrível. Minto, alguns sabem.
"Não sou pessimista, o mundo que é péssimo", disse outro sábio - e assino embaixo. É que agora não quero tecer nada bonito, doce. Deixar a dor correr.
Estamos começando a regência da lua minguante, talvez seja isso. A cada dia percebo como o calendário lunar é mais importante do que o solar. Não que a fase minguante não tenha a sua beleza, mas apenas me sinto desmotivado a sair por aí aspergindo qualquer coisa. O calendário solar é antes de tudo estéril, apesar de a gente basear nossa produção nele. Quelle ironie.
Agora ouço uma sonata. Quando penso em lua, penso em sonatas; talvez por causa da Sonata ao Luar de Beethoven. E continua sendo uma palavra doce de se dizer, sonata, doçura-opalescente-da-lua. E a sonata D. 959 do Schubert é tão bonita. Sobretudo o segundo movimento, belíssimo. Andantino. Silhueta triste lépida lânguida apreensiva compreensiva mordaz morta -.
Penso em Van Gogh e suas luas loucas e amarelos estrepitosos, que tanto saiu de dentro de si e morreu sem amar ninguém, la tristesse durera toujours. Sem ser amado por ninguém, sem para quê.
Somente a verdade tórrida de um sol das duas da tarde.


http://www.youtube.com/watch?v=OfU3OVG2Ku0


segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

- Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme de todas essas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando o meu raciocínio?
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terça-feira, 9 de dezembro de 2008

c'est lui
c'est moi
c'est ça
c'est la vie des choses
qui n'ont pas
un autre choix

água adormecida


Quiero saltar al agua para caer al cielo.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

também a existir se aprende


A idéia de postar isso surgiu de uma conversa ontem, quando falávamos sobre o fato de às vezes sermos individualistas e ferirmos as pessoas ao nosso redor. Mais precisamente, sintetizando tudo, a partir deste trecho:

"Algumas vezes eu fiz mal para pessoas que me amaram. Não é paranóia não. É verdade. Sou tão talvez neuroticamente individulista que, quando acontece de alguém parecer aos meus olhos uma ameaça a essa individualidade, fico imediatamente cheio de espinhos - e corto relacionamentos com a maior frieza, às vezes firo, sou agressivo. É preciso acabar com esse medo de ser tocado lá no fundo. Ou é preciso que alguém me toque profundamente para acabar com isso."

E nesse tempo em que vivemos, em que o preenchimento do vazio adquiriu traços mais sofisticados, em que a informação mais valor recebe, nossa individualidade é suplementada por aquilo que conhecemos, sabemos, vimos, sentimos. E a ameaça vem quando pessoas tentam atravessar esse domínio do sentido só nosso; somos cavaleiros de nosso próprio exército.
E aí pensei num livro muito bonito: O cavaleiro inexistente. E pensei em Gurdulu, em contraste ao cavaleiro Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura. E pensei em mim também. Não seria amar um esquecer-se da nossa individualidade? Um desejo incondicional de felicidade, uma tentativa de, sendo nós, sermos o outro? E que prender-se a uma individualidade é afastar de si algo como o amor? Afinal, se somos aquilo que gostamos...

- Eu sou - a voz emergia metálica do interior do elmo fechado, como se fosse não uma garganta mas a própria chapa da armadura a vibrar, e com um leve eco - Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez!
(...)
- Como é que não mostra o rosto para o seu rei?
- Porque não existo, sire.
- E como é que está servindo, se não existe?
- Com força de vontade - respondeu Agilulfo - e fé em nossa santa causa!
- Certo, muito certo, bem explicado, é assim que se cumpre o próprio dever.

(...)

- Olhem, ele está bancando uma pereira! - exclamava Carlos Magno, risonho.
- Já vou sacudi-lo! - disse Orlando, e deu-lhe uma pancada.
Gurdulu deixou cair ao mesmo tempo todas as peras, que rolaram pelo prado em declive, e ao vê-las descer não pôde fazer outra coisa senão rolar também ele feito pêra no relvado e assim desapareceu da vista de todos.

Com Gurdulu, visualizei o que um dia li e gostei tanto:
Tu és uma forma de ser eu, e eu uma forma de te ser: eis os limites de minha possibilidade.

domingo, 7 de dezembro de 2008

cor-ação

Olha, w., achei uma cor nova. Sempre quis saber que cor misteriosa e inefável era essa, quando o céu fica nublado de noite, entre o lilás e o laranja. E quem disse que amarelo é amarelo, azul é azul, e rosa é rosa?
Inventei uma cor, ora pois, pra poder pintar o céu daqui de baixo: lamora. Laranja com amora, gente.
E como sempre fico a olhar o céu noturno quando estou sozinho e lusitano, não raras vezes ouvindo Madredeus, com nostalgia anônima, esse nome serviu bem, pois num dia nublado como esse, sem poder ver as estrelas, diremos

lamora a minha solidão
lamora a minha esperança
lamora o meu amor?

god bless silent pain and happiness


Hoje vi Le temps qui reste, com o sempre belo Melvil Poupaud e a linda, reverberante e agora rouca Jeanne Moreau. E tenho que tomar cuidado pra não esquecer os detalhes. No tempo que me resta, pensarei em Romain e seus três meses de vida, olhos umedecidos de saudade antecipada.
Preciso escrever algo sobre o filme, mas não sei o quê. Fosse um filme qualquer, uma frase seria o bastante para traduzi-lo. Mas não. E não sei honestamente escrever imagens. Nesse momento, penso em Clarice e seus fecundos rodopios sobre a vida e a morte. Penso na expressão de Romain, ao devolver a bola azul para a criança na praia - azul de solidão - com um sorriso sincero de esperança, como que dizendo-lhe "eis a minha vida"; "e essa bola não é mais uma bola: sou eu". E, um pouco antes disso, seus pés cobertos de areia da praia. Que faço com essas imagens?
Na morte e no amor somos solitários e deles não fugimos. Agora fico com medo e ansiedade. Pois virão, melhor não pensar nisso agora; esperarei meus três meses. E crianças brincarão na praia com minha bola azul. Me dê a sua mão.

- Me dê a sua mão.
- Pode sentir o meu coração?
- Sim.
- Ele ainda bate.

sábado, 6 de dezembro de 2008

pegue esta maçã, meu senhor...



Certa vez conheci alguém que me fez perceber como abraçar é bom. Estranho foi, porque eu sabia desde sempre abraçar, mas aquele abraço era diferente, um amálgama reconfortante de braços e corpos, uma segurança boa - e se parássemos pra sentir como somos macios, nos abraçaríamos mais -.
E aí comecei a dar mais valor ao abraço, esse cumprimento tão novo pra mim. Se as estrelas fossem pessoas, iria querer abraçar todas, como faço sempre com aquela nostalgia doída quando olho de noite pro céu. E por que não seriam?
Mas acho que fracassei. De lá pra cá, encontrei pessoas especiais e não soube abraçá-las como mereciam; dei abraços efêmeros e tímidos, esqueci de fechar os olhos e parar de respirar por uns segundos pedindo licença pro tempo, esqueci o quão bonita a tristeza é, por mais triste que seja, envolvida num bom abraço.
É, acho que não sei o que fazer com a minha maçã. Feito o moço da foto, seguro perplexo o presente.


- Mas os vulcões extintos podem se reanimar, interrompeu o principezinho. Que quer dizer "efêmera"?
- Que os vulcões estejam extintos ou não, isso dá no mesmo para nós, disse o geógrafo. O que nos interessa é a montanha. Ela não muda.
- Mas que quer dizer "efêmera" ? repetiu o principezinho, que nunca, na sua vida, renunciara a uma pergunta que tivesse feito.
- Quer dizer "ameaçada de próxima desaparição".
- Minha flor estará ameaçada de próxima desaparição?


sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

encontros, pedrinhas no lago


De vez em quando penso nisso: o quanto sou das pessoas e das coisas que encontrei nessa vida. De gente que encontrei e também que nem vi pessoalmente: Clarice, Neruda, Bartleby, aquele mordomo d'O Silêncio, a voz gostosa da Delphine Seyrig, Drummond, Ítalo Calvino... Juliette Binoche, as cores de um quadro bonito, O Pequeno Príncipe. Seria ingenuidade, ou desonestidade, ou uma modéstia bem falsa, não reconhecê-los em mim, e não o contrário; não reconhecer em mim quem de alguma forma me fez vibrar, crispar a alma (piegas, mas não encontrei uma expressão melhor). E aí vem aquele pensamento "então é isso!", e uma felicidade solitária. Um gesto, uma expressão, uma frase, um sorriso, um olhar, uma meiguice qualquer, é isso então. E afeta. Uma comunicação muda, etérea, sincera. E sincera pois sem aspirações, sem força argumentativa, porém loquaz. Sutilmente loquaz.
Gosto da imagem de pedrinhas sendo atiradas no lago pra visualizar esses encontros. É mais ou menos assim: duas pedrinhas atiradas uma ao lado da outra com a mesma força possuem a mesma freqüência, vibram igualmente, produzem ondas em intervalos similares. Ondas essas que tendem a se encontrar em determinados pontos, formando uma só onda maior, somada e ampliada, amplitude.
Assim me sinto ao encontrar alguém que me afete. Nossa freqüência, que muito provavelmente tenha favorecido o encontro, converge e nos amplia de algum modo. Freqüência-amplitude, minha experiência e nossa onda.
Nunca gostei muito de física, mas esse exemplo me agrada sempre, porque é o que consigo utilizar pra explicar esses pequenos fenômenos chamados você, que agem sobre mim me modificando, me subtraindo e me ampliando, uma sanfona, uma sinfonia. Não, você.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008


- É um desperdício de inteligência.
- Não sou inteligente, sou vivaz. É diferente. Basta-me ver as coisas, não preciso escrevê-las.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008


E minha mãe diz que ficar em casa escrevendo faz mal para a pele.

domingo, 30 de novembro de 2008

"Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia."

sábado, 29 de novembro de 2008