sexta-feira, 26 de dezembro de 2008


Até mesmo fisiologicamente fui alterado: a quantidade de café ingerida para aumentar a intensidade da produção, os remédios para dormir. E meu corpo se vai imiscuindo às máquinas aos carros ao concreto à fumaça ao vidro quente ao ar pesado ao desejo lancinante. E ainda há os que evocam a palavra natural ou naturalização. Puta que pariu, eu não sou natural, gritei. Fazia tempo que não gritava. Apaguei a luz do banheiro e saí da frente do espelho.
Minha gravata estava torta no colarinho, como pude perceber, porém resolvi ir assim mesmo para ver se alguém iria reparar; o pessoal do escritório, talvez. Míriam, a secretária, talvez. Sentia-me impotente, como em todos os dias antes de sair para o trabalho. Chave-porta-botão-elevador. Carro. Tocando Chopin. Mudei para Bob Marley.
Soldado Búfalo no coração da América. Meu carro andava e as pessoas andavam. Ou o chão andava e as pessoas simulavam os movimentos parecendo caminhar? Questão de ponto de vista.
No escritório, Míriam me deu bom dia e respondi, peguei o jornal e fui para a minha sala; não havia muito trabalho a se fazer. Jovem punk assassina militante gay a facadas. Cientistas descobrem o gene responsável pela delinqüência. Lançado novo iPod. Anuncie aqui. - sempre as mesmas merdas. A natureza do homem. Homem.
Liguei para Letícia, "vem cá, você não pode ir à reunião com a Conservas Nogueira não?"; "vá você, hoje tenho audiência até tarde". As mulheres daquele escritório me amedrontavam, e seduziam. Acho que no geral era assim: eu, solitário e dependente do afago feminino, ao mesmo tempo com receio de me expor em demasia para elas. Tomei duas xícaras de café. Acertei a gravata no colarinho.
Fui me encontrar com os representantes da Conservas Nogueira; ao sair, na sala de esperas, pude ver uma moça muito bonita, blusa que me pareceu de seda bege, calça jeans colada e curta, mostrando as panturrilhas, com uma tatuagem na da direita, uma figura feérica com detalhes verdes e azuis, falando com Míriam, provavelmente esperando para ser atendida por Letícia. Pude ouvir entrecortadamente a conversa. Separação litigiosa, pensão alimentícia, etc. Aquele escritório me sufocava, apertei o passo para sair dali.
O elevador vazio me refletiu em seus três espelhos. Parou, e uma voz metálica feminina disse "sexto andar". Uma senhora entrou. Assobiei o bolero de Ravel enquanto o elevador chegava ao térreo, e fui embora.

*Trilha sonora sugerida: terceiro movimento de Pathétique [www.youtube.com/watch?v=3mp6-bLEgcw&feature=related].

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